OFíCIO CULTURAL E AUTOGESTÃO DA CENA

Não é preciso muito esforço para perceber, pelas ruas de qualquer cidade da Bahia, o predomínio de certos ritmos e eventos, legitimos ao gosto popular, mas que para além da relação artista-público, opera uma indústria cultural consolidada. Ou seja, constitui um modo de produção que envolve toda escala produtiva deste tipo de negócio. E como se trata de uma relação mercadológica, caminhando sobre os ditames do mercado, detém o monopólio. Monopólio este que atua na subjetividade dos consumidores, pois festas de camisas, carnaval, micaretas e suas atrações, suas produções(e produtoras) produzem subjetividades, criam gostos, preferencias, ditam os hits do momento.

É tão forte a ação desse mercado nas subjetividades, que vem mudando a forma como nos relacionamos com a música e as outras expressões artisticas. Quantos de nossos amigos, conhecidos, parentes frequentam eventos de teatro, cinema, dança, concerto musical, festas religiosas, fogedos, rodas de samba, maculêle? Quantos praticam capoeira? Quantos curtem hip-hop e conhecem o hip-hop local? Enfim, será que, por que não atribuem valor – tanto de uso quanto de troca – a essas linguagens, as ignoram? Essa é minha suspeita: o monopólio da indústria cultural – que engloba ritmos como axé-music, pagode baiano, sertanejo universitário, forró universitário, forró eletronico, espetáculos de artistas consagrados e fabricados pela mídia dominante – tem esvaziado o interesse pelas artes e todo bem simbólico com valor espiritual de nossa cultura, da mais tradicional à mais moderna.

Realidade problemática que estamos inseridos. Mas é preciso diferenciar as coisas. Pois uma coisa é pensar a cultura como negócio, visando simplesmente lucro – e reproduzindo o sistema de exploração – e outra coisa é pensar a cultura como ofício remunerado, visando a transmissão de certos saberes, numa perspectiva micropolítica para uma revolução molecular dos hábitos. Esta industria cultural – nacionalmente articulada e propagada pela midia – tem como finalidade o lucro, como uma fábrica. Os sujeitos envolvidos na cadeia produtiva de tal industria, a percebe como mercado de trabalho, como emprego formal, com todos os ditames da divisão do trabalho na perspectiva do capital – ou seja, a produção de mais-valia. Nesse contexto, a competitividade é acirrada, as relações sociais se desenvolvem na perspectiva da concorrencia, da disputa por espaço nesse mercado.

MC Osmar

Mas, hoje, haveriam modos de escapar da cultura do dinheiro, do lucro? Há modos de produçao alternativos à este cenário? Há como gerir uma cena cultural sem aderir ao modo de produção dominante? Penso que sim. Primeiro por que este mercado não absorve todas as expressões culturais, deixando espaço para que estas se desenvolvam por conta própria – mesmo de forma inibida, desarticulada e amadora. Segundo, por que, aqueles sujeitos que não se adaptaram ao modo de produção dominante, e não se acomodaram, tem dado sangue para ver a cultura acontecer – não só como produto, mas como, também, um enunciado alternativo, micropolítico e molecular, de repercussão social.

São tais elementos que me fazem crer na possibilidade da articulação de uma cena cultural alternativa à cultura do dinheiro. Contudo, para que se proponha um cenario alternativo, é necessário, a meu ver, uma certa “profissionalização” da cena – e uma forte expurgação de certos fantasmas da subjetividade. Quer dizer, envolve se apropriar dos saberes sobre esses modos de produção capitalísticos, e perverter a sua lógica da competitividade numa lógica da cooperação. Mas como? De volta àquela diferenciação lá de cima: pensando a cultura não como negocio e lucro, mas como rendimento autogestionário (economia solidária e de cooperação), micropilitica e revolução molecular dos hábitos.
Para tanto, é preciso avaliar os impasses ao desenvolvimento de uma cena deste tipo. Quais barreiras, subjetivas, logisticas e de organização, enfretamos para a construção de uma cena cultural alternativa e local, em Alagoinhas e microregião?

Começemos pela barreira subjetiva. Diante desse contexto que tento descrever, que envolve a cultura do dinheiro, mercado de bens simbólicos e industria cultural, não escapamos das modelizações subjetivas dos gostos, admirações, referencias e etc. Este tipo de modelização está espalhado por todos os cantos, em outdoors, na tv, na rádio, nos jornais, disseminados por toda malha social. E é claro que está presente na subjetividade de artistas, produtores e agentes culturais – dos mais adaptados aos mais resistentes. Mesmo que boa parte dos artistas, produtores e agentes culturais de Alagoinhas, se encontrem “marginalizados” neste cenário, é perceptível nos gestos, comportamentos, discursos desses sujeitos, a presença dessas modelizações. Modelos que obedecem a estrutura das celebridades, dos holofotes, e de todo aparato de sedução, que separa artistas, tecnicos de apoio, produtores, e hieraquizam os sujeitos.

Assim, estes sujeitos se perdem na busca de tais estruturas. Pode ser por falta de opção, pode ser por pura vaidade (que aliás é estimulado pela estrutura das celebridades e do mainstream) e também por não acreditar que possam viver da sua arte. Àlias, sintoma grave este. Não crer que é possível viver de seu oficio cultural. Deste modo, seguem sonhando com o estrelato, produzindo na precariedade, no esforço, por paixão – ou por reconhecimento – de forma que não conseguem vislumbrar alternativas a essa realidade.

Ora por se sentirem marginalizados – o que de fato acontece em relação às expressões culturais hegemonicas, que estão centralizadas em cidades de grande porte e capitais, restando às cidades do interior o papel de consumidores desse produto cultural – ora por não encontrar apoio em sua propria localidade, tais sujeitos vão isoladamente, de artista a artista, de produtor a produtor, produzindo e divulgando para poucos amigos e conhecidos.

É comum ouvir reclamações deles, acusando ora o poder publico, ora o setor privado, ora o público-consumidor, ora a população e por ai vai. Mas é dificil ouvir uma auto-critica, uma proposta que encaminhe uma alternativa. E neste contexto da cultura como produto, do ofício cultural reificado como força de trabalho, a descrença no proprio oficio é mortal. E esta descrença é expressa pela desunião, desassociação destes sujeitos. E pior, um certo clima de competitividade acirrada, uns queimando o trabalho dos outros, uns acusando outros, uns se sentindo melhor que outros. A culpa sempre está com alguém, sempre há alguém para culpar, mas esta culpa nunca está nos sujeitos que acusam. Enfim, um clima de autofagia - no popular: é cobra engolindo cobra! Tornando o contexto bem mais hostil por incitar o sectarismo e as disputas desagregadoras.

Outro problema diz respeito à logistica, a estruturação material – a ausencia e/ou raridade dela. Existem em Alagoinhas inumeros grupos e sujeitos envolvidos com expressões culturais, das mais variadas linguagens, mas quantos destes possuem sede, endereço postal fixo, equipamentos de suporte midiatico(como um computador com acesso à internet, no minimo)? Esta ausencia complica e muito as coisas. Contudo não determina a vontade daqueles que creiem nas possibilidades, pois tais grupos sobrevivem como podem. Quando se encontra grupos estruturados, não o é por que houve apoio de qualquer instancia pública ou privada e se há, pouco se sabe dos termos desse apoio. De qualquer forma, não é um habito comum aos apoiadores deste tipo – poder público e iniciativa privada – patrocinar, subsidiar, doar a qualquer manifestação cultural livre de interesses. Quando muito, pode haver parcerias, mas muito limitadas pela contra-partida do beneficiado. Isso se dá por muitos motivos, mas o visível é que não há, por parte dos sujeitos ligados aos setores e instituições que podem apoiar grupos culturais, interesse e/ou conhecimento da cena cultural local. Ou pior, conhecem, até já ouviu falar aqui e ali, mas não dão valor – tanto de uso quanto de troca.

Fato este, que torna o contexto mais hostil para aqueles que pretendem viver de seu ofício cultural de forma autônoma. Na verdade, penso que ambos fatores se cruzam em determinado momento. Pois, a autofagia dos artistas, produtores e agentes culturais aliado à falta de estrutura, logistica e apoio aos grupos e sujeitos envolvidos com o ofício cultural, deixam pouca possibilidade para realização de eventos que fomentem e fortaleçam grupos e/ou sujeitos. Além também de um certo desdém do pouco público que gostam dos eventos alternativos, mas, que, se há bilheteria, se cobra-se um preço acessível, para manter, a trancos e barrancos os eventos , logo reclamam, ou acusam de “capitalistas” sem entender que para se autogerir precisamos nos apropriar do capital – até para ir de encontro a ele. Fica mais doloroso, quando vemos que o sujeito não quer pagar a bilheteria – que não é um valor superior a R$ 10 – pois prefere comprar umas cervejinhas, um vinho, uma larica (e participar ativamente da sociedade do consumo, sem culpa e sem autocritica), a fortalecer a cena cultural local.

Diante do exposto, me sobra agora tentar propor caminhos, rotas alternativas para, a longo prazo, avaliar a possibilidade de resistir à fetichização da cultura e reificação do oficio cultural. Assim, volto ao ponto em que dizia que creio numa cena alternativa se houver uma profissionalização da cena. Tomo este termo “profissionalização” não no sentido de trabalho que o capitalismo sugere – qual seja, a venda da força e trabalho. Por isso optei por chamar o trabalho na cultura, em eventos culturais, na criação artistica e afins, de oficio. Para tanto, para superar e suplementar a noção de trabalho como mercadoria, é preciso pensar no mercado em outros termos. Numa perspectiva da autogestão, o trabalho não estaria vinculado a mais-valia.

Universo Variante
Autogestão não é negar o dinheiro, a renda, a pequena “propriedade” e o trabalho. Para se autogerir é necessário participar do mercado, conectando aqui e desconectando ali, mas dando um sentido outro. Não no sentido da livre-iniciativa, concorrencia e competitividade, da sobredeterminação do valor de uso pelo valor de troca. E sim no sentido do apoio mutuo, cooperação, fortalecimento de cenários alternativos. Na autogestão o valor de uso é que sobredetermina o valor de troca. Assim, uma cena cultural que se organize numa perspectiva autogestionária, precisará definir sua metas em termos de discursos e enunciados, rentabilidade finaceira para distribuição entre os associados da cena, levando em conta a mudança nos habitos de consumo e mercado, não para se excluir dele, mas para inserir-se fortalecido e propondo uma alternativa à forma de exploração presente no mercado de trabalho do capital cultural.

Nem patrão, nem empregado, apenas profissionais autônomos executando suas funções, por livre associação, de acordo com seus interesses, segundo suas possibilidades, e recebendo de acordo com suas necessidades. Contudo, faz-se necessário uma auto-crítica dos sujeitos envolvidos nesse tipo de ofício, para desmontar e desintoxicar as modelizações subjetivas capitalísticas, às quais estamos constantemente “submetidos”. A “profissionalização” que sugeri, está amparada nestas premissas. Sendo, assim, necessário o desenvolvimento de práticas associativas, como a criação de cooperativas de artistas, produtores, associação de músicos, atores, poetas, mestres da tradição e etc, pois tais ações fortalecem estes sujeitos, lhes fornecem poder de fala e negociação com as instituições. E é dentro dessas agremiações de oficio cultural(cooperativas, associações, coletivos de artistas) que a autogestão precisa ser experimentada cotidianamente, para desmontar as modelizações subjetivas do capital cultural, e criar uma cultura da cooperação mutua, da livre associação e da autonomia.
Que tais associações e agremiações sejam feitas por afinidades de oficio – e por afinidades subjetivas também. Pois não podemos nos iludir pensando que não haverá conflitos(de interesses, pessoais, disputas egocentricas e etc). Sempre há divergências. O importante é torná-las visíveis e resolve-las com uma certa serenidade, não deixando que tais conflitos (principalmente os de carater pessoal) provoquem a desagregação. O que será mortal para qualquer cena cultural que se pretende autonoma. Por isso insisto que é preciso um pouco de autocritica por parte dos sujeitos envolvidos em tal empreitada.
O importante é que os grupos, coletivos, associações e etc, tenham suas metas bem traçadas, saibam quais dificuldades precisam superar e quais agremiações se pode associar para tal e qual proposta de evento, formando uma Rede de apoio entre os oficios culturais, sem centralização das decisões. Lenvando sempre em conta o acontecer da cultura, na suas mais variadas expressões, numa perspectiva micropolitica e de mudança nos hábitos, na formação de público e de cidadãos autonomos.
A intenção aqui é abrir um debate entre aqueles que se sentirem tocados por tal proposta. Esta não é de facil execução, apesar de já ser experimentada por uns poucos trabalhadores da cultura – quase invisíveisl, mas já perceptíveis – que querem ver expressões culturais que estão marginalizadas e ofuscadas pelo monopolio da industria cultural, acontecendo independente do lucro. Mas que precisa gerar renda para a manutenção da cena cultural alternativa. Pois, assim, creio eu, poderemos criar o poder de negociação com as instancias de apoio, todavia mantendo a autonomia. E quem sabe assim, uns fortalecerem os outros, fortalecendo a cena cultural local, criando uma brecha, um Oásis no deserto da cultura como negocio.



Mauricio de Jesus

Músico, poeta e membro da banda Devirineos & Moleculares





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